Por que as associações de saúde mental dos EUA justificam o ataque genocida de Israel a Gaza

Por Dra. Samah Jabr / tradução Gabriela Carvalho

Texto originalmente publicado em 15 de outubro de 2023, no Middle East Eye. https://www.middleeasteye.net/opinion/israel-palestine-war-gaza-us-psychiatric-associations-genocidal-attack-justify-why

As condenações unilaterais das principais associações de psiquiatria reforçam a propaganda israelense e tornam-as cúmplices da opressão e do assassinato de palestinos.

Nesta semana, a Associação Americana de Psiquiatria (APA) emitiu uma declaração sobre os “ataques terroristas em Israel” e a Academia Americana de Psiquiatria Infantil e Adolescente (AACAP) divulgou um relatório semelhante à resposta aos “recentes ataques e atos de terror em Israel”.

Na situação atual, estas são condenações unilaterais e não abordam os 75 anos de ocupação da Palestina por Israel, e as numerosas atrocidades cometidas contra os palestinos ao longo desse período.

Enquanto a APA retrata a resistência palestina como anti-semitismo e terrorismo, o direito de resistência de um povo ocupado é legal de acordo com as normas do direito internacional e, assim como a própria saúde mental, trata-se de um direito humano fundamental.

O terrível desequilíbrio nas declarações da APA e da AACAP reflete uma perigosa falta de consciência ou ignorância imoral e intencional dos efeitos da ocupação à saúde física e mental, especialmente no cerco de Gaza aos palestinos.

Ao não abordar o sofrimento de anos dos palestinos e apoiar o ocupante, a APA e a AACAP violaram os seus próprios princípios de imparcialidade e neutralidade e expuseram a sua falta de compromisso com as necessidades de saúde mental de todas as pessoas.

Vidas desiguais

As declarações das principais associações de psiquiatria do mundo negligenciam o contexto histórico e fazem vista grossa à população sitiada em Gaza, metade da qual são crianças. Não fazem qualquer menção ao horrível bombardeamento do pequeno enclave [um território ou parte de um território cercado por outro Estado] ou ao que muitos grupos de direitos humanos chamam agora de genocídio contra os palestinos.

Da mesma forma, as declarações ignoram totalmente o impacto psicológico e o trauma da ocupação. Grupos de direitos humanos documentaram durante anos as condições desumanas a que os palestinos estão submetidos, incluindo relatórios dos Médicos pelos Direitos Humanos, Anistia Internacional e Save the Children, entre outros.

Parece óbvio que as preocupações dos profissionais de saúde mental devem estender-se igualmente a todas as pessoas. Quem melhor do que os psicoterapeutas para compreender a importância da liberdade?

Na sua campanha brutal de punição coletiva, Israel cortou o acesso a alimentos, combustível, eletricidade, água e suprimentos médicos. No que está sendo descrito como a segunda Nakba [catástrofe em árabe], já houve o deslocamento de centenas de milhares de palestinos que foram forçados a fugir de suas casas.

Um terço dos mais de 2.200 palestinos mortos e dos quase 9.000 feridos, até agora em Gaza, são crianças, mas as suas vidas aparentemente não eram dignas de menção pela AACAP.

Mesmo na sua declaração tímida sobre a atual “crise” em Gaza, a AACAP não consegue “lamentar” as crianças mortas, expressando apenas uma vaga preocupação pelas “imagens” potencialmente angustiantes às quais as crianças podem ser expostas. É como se os jovens adolescentes não tivessem sido forçados a suportar cinco guerras de Israel em Gaza, com inúmeras mortes de civis, durante a última década e meia.

Para além da violência, Gaza foi devastada por um período de 16 anos de bloqueio, sendo descrita como uma prisão a céu aberto com a maior densidade populacional. Nos últimos dias, mais de um milhão de pessoas foram ordenadas por Israel a deixar as suas casas sem terem para onde ir.

Parece óbvio que as preocupações dos profissionais de saúde mental devem estender-se igualmente a todas as pessoas. Quem melhor do que os psicoterapeutas para compreender a importância da liberdade para os seres humanos – tanto para os palestinianos, como para os israelenses? Caso contrário, a única explicação para esta clara duplicidade de critérios é que a APA e a AAPAC adotaram a narrativa oficial israelense e são incapazes de ver os palestinos como seres humanos.

Propaganda perigosa

As declarações desumanizam ainda mais os palestinos, ignorando os constantes desafios em saúde mental e o trauma coletivo, resultantes de décadas de opressão, violência contínua, humilhação e injustiça infligidas pela ocupação.

O bombardeio de escolas, ambulâncias e hospitais palestinos – incluindo o único hospital psiquiátrico em Gaza, que ocorreu na manhã de sexta-feira [13/10/23], como soube pelo diretor e meu colega, Dr. Abdullah Aljamal – é apenas um exemplo desses danos crônicos.

Tais declarações de organizações médicas, que alegam não serem um lobby político, inflamam ainda mais o sentimento público e reforçam a propaganda perigosa de apoio às ações genocidas de Israel contra os palestinos em Gaza. Ao invés disso, a APA e a AACAP poderiam ter feito melhor para enfrentar as mentiras cruéis divulgadas pelo governo estadunidense e pela mídia, incluindo os horríveis, e já desmentidos, “bebês decapitados“.

Se estas organizações estivessem verdadeiramente preocupadas com o bem-estar dos civis ou das crianças, poderiam ter confrontado o enorme arsenal de ajuda militar dos EUA a Israel, que contribui para a implementação dos projetos assassinos contra os palestinos.

Atitudes arrogantes

A APA e a AACAP poderiam ter contribuído de outra forma com o povo de Israel, ajudando-o a abandonar as suas atitudes arrogantes e o sentido de direito. Poderiam ajudar a conter as futuras violências, reconhecendo a luta legítima dos palestinianos para viverem em liberdade e dignidade e reconhecendo que onde quer que haja opressão, haverá resistência.

É essencial uma abordagem mais equilibrada e empática, que reconheça as lutas em matéria de saúde mental de ambos os lados e defenda uma resolução justa e pacífica para ambos os povos. Uma resolução baseada nos princípios dos direitos humanos e no direito internacional.

A saúde mental como direito humano fundamental foi o tema do último Dia Mundial da Saúde Mental, em 10 de outubro. Trabalhar em prol da saúde mental global exige uma perspectiva abrangente e inclusiva que apoie todos aqueles que são afetados por esta crise duradoura e contínua.

Os psiquiatras e profissionais de saúde mental palestinos apelam a todos os colegas, e às organizações de saúde e de saúde mental em todo o mundo, para que defendam a ética do nosso papel profissional e não sejam corrompidos pela ideologia política.

Devemos reagir contra a APA e a AAPAC e quaisquer outras organizações profissionais que contribuam para representações negativas e odiosas do povo palestino. Estas declarações perigosas tornam-os cúmplices da opressão e do assassinato de palestinos.

Dra. Samah Jabr é psiquiatra e chefe da Unidade de Saúde Mental do Ministério da Saúde palestino.

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