Nenhum ser humano é ilegal!

Finalizamos o ano de 2023 testemunhando a perversidade e a crueldade diante de novas catástrofes humanitárias, seja enquanto autores da violência ou sujeitos indiferentes à ela, permitindo que tais violações sigam acontecendo. 

Falamos aqui dos mais de 80 dias de violações contra o povo palestino, mas também dos conflitos perpetuados no Iêmen, Sudão, Mianmar, Somália, Ucrânia e tantos outros.

Diante disso, as ações que acompanhamos no contexto internacional é de silenciamento e/ou endurecimento das respostas aos movimentos migratórios. A França aprovou no dia 20/12/23 uma nova lei de imigração, com ampla aprovação no parlamento, que traz uma perspectiva mais restritiva, securitária e criminalizante da migração. 

Enquanto coletivo de Psicólogas(os) comprometidas(os) com os direitos das populações migrantes, expulsas, deslocadas, refugiadas, ou na diáspora, compartilhamos das reflexões do escritor e filósofo Paul B. Preciado em sua carta “Feitiço para aqueles que tornaram possível a lei da imigração”. Desejamos que as fronteiras internas e externas cedam, e que prevaleça em nós a capacidade de empatizar e de promover mudanças, para que novos futuros sejam possíveis. 

“Feitiço para aqueles que tornaram possível a lei da imigração”

Por Paul B. Preciado

Este é um encanto tecnoxamânico para ser feito coletivamente durante as festas sagradas e pagãs que correspondem à passagem das noites mais longas e dos dias mais escuros do ano no hemisfério norte, até o retorno da luz. Este feitiço é dedicado a todos aqueles que redigiram a nova lei anti-imigração na França, que votaram a favor dela ou que, havendo manifestado a abstenção de votar ou lutar para que a lei fosse alterada, tornaram-na realidade.

Que as fronteiras que vocês criaram se fechem sobre vocês. Que as leis que decretaram sejam aplicadas a vocês mesmos. Que lhes seja retirada a nacionalidade que possuem e reivindicam como se fosse um direito natural e que, em seu lugar, seja criado um cartão de “delinquente político” para cada um de vocês, com seus nomes e os nomes de seus genitores, suas impressões digitais, seu sexo e sua foto.

Que vocês sejam objeto de repressão por todo lado e não sejam bem-vindos em lugar nenhum. Que as condições de acolhimento sejam sempre restritas. Que nem a amizade, nem o casamento, nem a família lhes possam garantir o direito de acolhimento. Que os seus pedidos de autorização de residência sejam recusados em toda parte e para sempre.

Que as fronteiras que vocês ergueram se fechem sobre vocês. Que nem o dinheiro nem o poder ajudem a atravessá-las. Que sejam sempre e em todo o lado deportados em nome da lei. Que os seus mais básicos direitos humanos sejam espezinhados mesmo antes do seu nascimento e depois da sua morte. Que não haja qualquer possibilidade de reagrupamento familiar para vocês e para os seus entes queridos. Que para onde quer que vocês forem, sejam estrangeiros.

Que a sua existência na Terra seja considerada um crime, e que o seu corpo vivo e vulnerável, a sua aparência, a sua língua e a sua religião sejam declaradas ameaças graves à ordem pública. Que, para onde quer que forem, suas presenças sejam reconhecidas como delito de residência ilegal, punível com uma multa de 3.750 euros. Que cada cruzamento se torne um posto de fronteira para vocês e que, em cada esquina, um policial possa tirar as suas impressões digitais sem o seu consentimento.

Que, se estiverem doentes, não tenham direito a tratamento. Que lhes sejam recusados sistemas universais de saúde. Quando passarem fome, que aqueles que se dizem cidadãos nacionais tenham o direito legal de privá-los do pão.

Que a polícia, a que concederam poderes ilimitados, os persiga por becos escuros, onde todas as portas e janelas se fecharão no seu caminho. O peito esmagado por botas, os olhos arrancados por balas de borracha.

Que aquelas e aqueles que os maldizem por causa do seu local de nascimento, da cor da sua pele, do seu gênero, da sua sexualidade, da sua religião ou etnia, do seu estatuto econômico ou da sua formação profissional, exerçam sobre vocês, através da imposição de quotas, um direito de vida ou de morte.

Que as fronteiras que erigiram se fechem sobre vocês. E quando morrerem a tentar atravessá-las, que os seus nomes sejam esquecidos e que os seus corpos, perdidos no fundo do mar, queimados no deserto ou esquecidos numa vala, nunca sejam encontrados nem enterrados como deve ser.

E depois de terem sido submetidos às leis de um mundo que vocês próprios criaram, que as suas fronteiras interiores cedam finalmente. Que os seus corações se abram e se tornem uma Arca de Noé cósmica, na qual as almas de todos os mortos que condenaram possam entrar sem impedimentos. Que os espíritos de Zyed Benna e de Bouna Traoré, de Mohamed Bendriss, de Alhoussein Camara, de Adama Traoré, de Nael Merzouk e de milhares de outros os possuam, os habitem e os transformem. E que vocês, cheios do poder das vidas que tiraram, ouçam o apelo da graça gringa e anarco-queer.

Através do poder transformador dessa graça, que possam ser totalmente diferentes do que são, porque o futuro do mundo depende da sua capacidade de mudar. Que possam experimentar a alegria e a dor da empatia universal. Que o seu coração anteriormente fechado se sinta solidário com tudo o que até agora considerou estrangeiro, estranho e criminoso. E quando sentirem o universo inteiro no seu corpo como se fosse a sua própria carne, aí então hão-de chorar inconsolavelmente.

Que a pomba da paz, cujas asas vocês cortaram, faça o seu ninho dentro de vocês e devore todos os desejos de domínio e de morte. Que a força do amor planetário expulse de suas mentes o fascista que as subjuga. Que o ditador que tomou posse do Parlamento das mentes seja destronado e que a liberdade reine na vida de vocês. Por meio deste feitiço, e contra a ideologia vontade de vocês, apelamos para transformação dos seus desejos sem qualquer reversibilidade possível, para o bem do planeta e de vocês mesmos.

Que tudo isto seja dito e feito em nome de James Baldwin e Audre Lorde, Frantz Fanon e Jean Genet, Aimé Césaire, Cherrie Moraga e Gloria Andalzúa, Leslie Feinberg e Marsha P. Johnson. Invocamos a sua força e poder, a sua compaixão e sensibilidade, para que a transformação seja total e absoluta. Amém, e feliz solstício.

Tradução: Prof. Dr. Adalberto Müller Junior 

Texto e diagramação: Gabriela Teixeira e Henrique Galhano

Revisão: Rima Awada

Open letter from psychologists calling for an end to the violence against the Palestinian people

Signature link https://forms.gle/gRjh8wXaPdHRMJbd8

We call on all people, the international community, especially mental health professionals, to work towards a non-violent and definitive solution to the ongoing conflict, to take concrete actions for an immediate ceasefire in the area, and for the ending of the brutal colonialism in place. We also emphasize the importance of opening the borders to humanitarian aid for the Palestinian people.

In these last days, Israel’s brutal and cruel bombing in the Gaza Strip – a territory that has been besieged by Israel for the last 17 years – has resulted in  the deaths of more than 8,000 Palestinian (including more than 3,400 children), and more than 20,000 injured people. Alongside, millions of people have been forcibly displaced and deprived of basic needs (PRCS, 2023)[1].

However, the figures fail to represent the current reality, as the death toll and injuries rise second by second.Israeli air strikes destroyed more than half of Palestinian residences, besides deliberate attacks on hospitals, schools and universities, erupting a massive humanitarian crisis.

We also condemn and deplore the violence against Israeli civilians, victims of Hamas’ violent retaliation, especially because it has affected innocent people, many of whom are still kidnapped.

Recent statements released by an official representative of the Israeli governmentrefered to Palestinian people as “human animals”[2]. Accordingly, the entire Gaza population  be held like hostages, through a complete blockade of food, water, electricity, fuel and medicines. Israel very recently blocked access to internet signals, isolating Gaza from the rest of world. (MSF, 2023)[3]

The collective punishing of innocent people constitutes a war crime and, hence, must be strongly condemned. (ICRC, 2022).[4] We consider that Israeli government pronouncements have amplified the racist ideology, relying on international impunity and compliance. Xenophobia reinforcement turns migrants, refugees and stateless people – not just Palestinians – the main victims of the dehumanising discourse.

It’s crucial to keep an eye on what’s going on in Gaza: 2.2 million people – most of whom were already displaced migrants from historic Palestinian territories irregularly occupied by Israel – have been living in an open-air prison for 17 years[5]. Israel determines what comes in and out of Gaza: people, energy, food, medicine, fuel and humanitarian aid. Whole families have their homes destroyed by bombings, children are born and die surrounded by walls, and their national identity and existence as a people have been denied for decades.

The systematic ethnic cleansing of a walls-confined population living under a military siege by air, land and sea is undoubtedly a horrendous crime.. The colonial measure imposed on this population, not only in Gaza but also in the West Bank and other parts of historic Palestine, has already produced 6.1 million Palestinian refugees (UNRWA, 2023)[6].

While witnessing the unacceptable thousands of deaths, we note with concern the harassment and attempt to silence supports of Palestinian rights. Under any circumstance, it should be acceptable to persecute those who denounce the existence of stateless people living in apartheid conditions.

These claims are incontestable. The UN Human Rights Council 2022[7] presented a report pointing out 3 essential elements: Palestine is strictly an open-air prison, the largest prison in the world; there is an apartheid regime throughout Palestine; and some aspects of everyday life in Gaza share similarities to a concentration camp. None of this began on the 7th of October 2023. There is nothing new except for the intensification of war propaganda against the Palestinian people. That can be named as Media Genocide, which is the intentional elimination of a people through war propaganda and, the circulation of false news and narratives.

The Palestinian struggle is also a struggle to be waged in Brazil.. We perceive the Palestinian tragedy as deeply connected to the war against the poor, Black people and traditional communities in our country. The same logic of racial and ethnic supremacy relies on Brazilian whiteness, which justifies police incursions into favelas systematically murdering Black people including children, teenagers and young people. It is important to emphasise that there are numerous agreements between the Brazilian security forces and the Israeli armed forces, with Brazil being one of the biggest markets of Israel’s arms industry[8]. Israeli ammunition finds Black and peripheral Brazilian bodies.

The supremacist rhetoric of brutalisation and dehumanisation has historically been denounced by the Black movement in Brazil, for example in the context of the former South African apartheid regime and also in international solidarity actions for the Palestinian people. Black liberation movements have also experienced the ideological condemnation of their freedom efforts, which were labelled under the rubric of “terrorists”. The dehumanisation of Black people is also the dehumanisation of the Arab people, a violence consolidated by the whiteness global alliance and its genocide and ethnocide practice.

THE SOCIAL COMMITMENT OF PSYCHOLOGY IN DEFENSE OF THE PALESTINIAN PEOPLE

We, as psychologists committed to every human life’s dignity, guided by the Fundamental Principles of our Ethic Code, urge for a radical commitment to the anti-racist and anti-genocide struggle, which is connected to the ethical and political duty of psychology.

We call on our professional category and psychology students to bravely tackle this issue affecting the whole world. A call to fulfill  our ethical duty to uphold human dignity, by keeping a critical distance from war propaganda and demanding humane and dignified relations throughout all the ongoing situations.

Almost every child or teenager in Gaza has been born in a state of segregation, a situation that combined with constant attacks, and the side effects of the siege and occupation has been triggering severe psychological distress and psychiatric disorders[9]. The colonial and apartheid regime imposed on Palestinians, described in six reports released by United Nations and recognised by several humanitarian organizations, including Amnesty International,  are social determinants of mental health deterioration.[10].

Therefore, a historical analysis of the Israeli occupation in Palestine, the Nakba effects and the 1948 catastrophe is essential. Psychology, as a science and a profession, must reject superficial or improper analyses in this sense. We criticize institutions and associations in the mental health field whose statements endorse the dehumanising rhetoric worldwide spread. For instance, the APA declaration[11] neglected the Palestinian historical context, disregardingthe violence imposed on the besieged Gaza population. There is no mention of the terrible bombing of the small enclave [a territory or part of a territory surrounded by another state] affecting Palestinians in an incomparable way to Israelis. We consider that these statements[12] ignore contingencies such as precarious mental health, besides amplifying the collective trauma resulting from decades of oppression, continuous violence, humiliation and injustice inflicted by Israel’s occupation.

Politics and mental health cannot be dichotomised. One cannot analyse the occupation of Palestine without examining the strategies of dehumanisation, and the stripping of dignity and life of the Palestinian people.

The dehumanisation of Palestinian lives – whether in deeds or speeches – normalises Palestinian suffering, as if it was natural, obvious and impossible to stop. Palestinians have been vocalising their suffering for decades and pleading for visibility to the international community. They do so in countless non-violent ways: resisting every minute, every second, to avoid disappearing. They produce art, music, and poetry. They cultivate and care for their original land and territory.

Until we see a Palestine free of Israeli colonial domination, no number of bombs will extinguish the innate desire to live with dignity. In this way, the Palestinian resistance is incurable, quoting Mahmoud Darwish.

As psychologists, we understand and accept the historic call to stand alongside the Palestinian people. The complicity with mass genocide, ethnic cleansing and the murder of children in particular, shall not be in our name.

We condemn the system of segregation, discrimination and collective punishment imposed on Palestine. There is an urgent need to build peace, which only comes through the consolidation of the Palestinian State and establishing a regime that respects the universal rights of all those who live in the region.

The Palestinian people – like all people in their self-determination – need to be able to exist beyond the imposed walls, the barbed wires, the refugee camps and all the dehumanisation: they need to be able to make their contribution to the beautiful story, yet to be built, of collective emancipation and the development of the humankind.

The PSIMIGRA Collective

References

ICRC (2022) O que é o direito internacional humanitário. Disponível em: https://www.icrc.org/pt/document/o-que-e-o-direito-internacional-humanitario

MSF (2023)  Immediate ceasefire is needed in Gaza to stop the bloodshed. Disponível em:

https://www.msf.org/immediate-ceasefire-needed-gaza-stop-bloodshed

ONU (2022). A ONU e a questão da Palestina. Disponível em:  https://news.un.org/pt/focus/oriente-medio

PRCS – Palestinian Red Crescent Society (2023). Summary of the Palestinian Red Crescent Society’s Weekly Response Report. Disponivel em:

https://reliefweb.int/report/occupied-palestinian-territory/summary-palestinian-red-crescent-societys-weekly-response-report-saturday-07102023-0600-until-saturday-16102023-2400

Save the Children (2023). GAZA: 3,195 Children Killed in three weeks surpasses annual number of children killed in conflict zones since 2019.  disponivel em: https://www.savethechildren.net/news/gaza-3195-children-killed-three-weeks-surpasses-annual-number-children-killed-conflict-zones

UNRWA (2022) Nações Unidas preocupadas com cerco à Faixa de Gaza e impedimento de ajuda. Disponível em:

https://news.un.org/pt/story/2023/10/1821552

[1] https://reliefweb.int/report/occupied-palestinian-territory/summary-palestinian-red-crescent-societys-weekly-response-report-saturday-07102023-0600-until-saturday-16102023-2400

[2]https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/afp/2023/10/09/ministro-israelense-da-defesa-ordena-cerco-da-faixa-de-gaza.htm and  https://theintercept.com/2023/10/09/israel-hamas-war-crimes-palestinians/

[3] https://www.msf.org/immediate-ceasefire-needed-gaza-stop-bloodshed

[4] https://www.icrc.org/pt/document/o-que-e-o-direito-internacional-humanitario

[5] https://anistia.org.br/wp-content/uploads/2017/02/AIR2017_ONLINE-v.3.pdf and https://g1.globo.com/mundo/noticia/2023/10/10/faixa-de-gaza-e-prisao-a-ceu-aberto-descreve-especialista.ghtml

[6] https://news.un.org/pt/story/2023/10/1821552

[7] https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/relatorio-da-onu-critica-israel-por-manter-ocupacao-em-terras-palestinas/

[8] https://www.brasildefato.com.br/2017/02/03/brasil-e-um-dos-principais-compradores-de-tecnologia-e-treinamento-militar-israelense

[9] https://www.savethechildren.net/news/gaza-3195-children-killed-three-weeks-surpasses-annual-number-children-killed-conflict-zones

https://www.middleeasteye.net/opinion/israel-palestine-war-gaza-us-psychiatric-associations-genocidal-attack-justify-why

[10]  https://anistia.org.br/wp-content/uploads/2017/02/AIR2017_ONLINE-v.3.pdf

[11] https://www.psychiatry.org/News-room/News-Releases/APA-Statement-on-Terrorist-Attacks-in-Israel

[12] https://www.aacap.org/AACAP/zLatest_News/AACAP_Responds_Recent_Attacks_Israel.aspx

Carta aberta de Psicólogas(os) pelo fim da violência contra o povo palestino

Link para assinatura da carta https://forms.gle/gRjh8wXaPdHRMJbd8

Clamamos a todas as pessoas, a comunidade internacional, em especial aos profissionais de saúde mental, para construir uma saída não violenta e definitiva para este conflito, para que tomem ações concretas pelo cessar fogo contra o povo palestino e para dar fim ao colonialismo brutal. Ressaltamos também, a importância  da abertura das fronteiras para a entrada de ajuda humanitária ao povo palestino.

Nos últimos dias, o bombardeio brutal e perverso de Israel sobre a Faixa de Gaza – que tem sido sitiada por Israel nos últimos 17 anos – resultou na morte de mais de 8.000 palestinas(os) (entre elas mais de 3.400 crianças), mais de 20.000 feridos e provocado o deslocamento forçado de mais de um milhão de pessoas, sem acesso à mantimentos básicos de sobrevivência. (PRCS, 2023)

Os números serão sempre desatualizados frente às perdas que acontecem a cada segundo. A destruição de mais da metade das unidades residenciais, além de deliberados ataques em hospitais, escolas e universidades, representam uma tragédia de proporções humanitárias. Condenamos e lamentamos também os casos de violência contra civis israelenses, vítimas do revide violento do Hamas, especialmente porque tem atingido pessoas inocentes, muitas delas ainda sequestradas. 

Declarações recentes dadas por um representante oficial do Governo de Israel referem ao povo palestino como “animais humanos”. Para eles, toda a população de Gaza deve ser feita de refém através de um bloqueio completo de comida, água, eletricidade, combustíveis e medicamentos. Mais recentemente, Israel bloqueou o acesso a sinais de telefone e internet, isolando Gaza do resto do mundo. (MSF, 2023)

A lógica de punição coletiva de inocentes é considerada crime de guerra e deve ser veementemente repudiada. (ICRC, 2022) Entendemos que estas e outras declarações do Governo israelense tem ampliado a ideologia racista e que opera com impunidade e complacência internacional. A xenofobia volta com força, e hoje faz de migrantes, refugiadas(os) e apátridas – não apenas palestinas – as principais vítimas do discurso desumanizante.

É fundamental que não percamos de perspectiva o que se passa em Gaza: são 2.2 milhões de pessoas, cuja maioria já eram migrantes deslocados de territórios da Palestina histórica ocupados irregularmente por Israel, que vivem há 17 anos numa prisão a céu aberto . Israel é quem decide o que entra e o que sai de Gaza: pessoas, energia, comida, remédios, combustível e ajuda humanitária. Famílias inteiras têm suas casas destruídas por bombardeios. Crianças nascem e morrem cercadas por muros, tendo sua identidade nacional e a existência enquanto povo, negada há décadas.

Nada é mais criminoso do que a limpeza étnica sistemática de uma população confinada em muros altos, construídos para esconder um cerco militar por ar, terra e mar, o que consideramos um verdadeiro crime. Não apenas em Gaza, mas também na Cisjordânia e em outros pontos da Palestina histórica, a ação colonial imposta a esta população já produziu 6,1 milhões de refugiadas(os) palestinas(os) (UNRWA, 2023). 

Enquanto presenciamos a intolerável perda de milhares de vidas, vemos com urgência e preocupação o assédio e a tentativa de silenciamento dos posicionamentos em favor dos direitos dos palestinos. Não é aceitável, sob nenhum pretexto, perseguir quem denuncia a existência de um povo apátrida, vivendo em condições de apartheid

Estas denúncias são contundentes. Um relatório apresentado ao Conselho de Direitos Humanos da ONU em 2022 aponta 3 elementos essenciais: a Palestina é rigorosamente uma prisão a  céu aberto, a maior prisão do mundo; há um regime de apartheid em toda a Palestina; foram identificados nesses relatórios traços de uma vida em Gaza equivalente à de um campo de concentração. Nada disso começou no dia 7/10/23 e nada disso é novidade. O que se acirra é a propaganda de guerra contra o povo palestino como a de agora. Isso é genocídio midiático, uma eliminação intencional de um povo a partir da propaganda de guerra, de circulação intencional de notícias e narrativas falsas.

A luta palestina é também uma luta a ser empreendida no Brasil. Entendemos a tragédia palestina como profundamente conectada com a guerra aos pobres, negros e comunidades tradicionais no nosso país. A lógica de supremacia racial e étnica é refletida na branquitude brasileira, que justifica incursões a favelas e o assassinato sistemático de crianças, adolescentes e jovens negros. Importante ressaltar que há inúmeros convênios entre as forças de segurança brasileiras e as forças armadas israelenses, sendo o Brasil um dos maiores clientes da indústria de armamentos de Israel. A munição israelense encontra corpos negros e periféricos brasileiros. 

As lógicas supremacistas de brutalização e a desumanização tem sido historicamente denunciadas pelo movimento negro do Brasil, por exemplo, no contexto do antigo regime de apartheid sul-africano e também em ações de solidariedade internacional com o povo palestino. Os movimentos de libertação negra também experimentaram a condenação ideológica de seus esforços de liberdade sob a rubrica de “terroristas”. A desumanização do povo negro é também a desumanização do povo árabe, consolidado por uma aliança da branquitude global, em seu caráter genocida e etnocida.

O COMPROMISSO SOCIAL DA PSICOLOGIA EM DEFESA DO POVO PALESTINO

Nós, Psicólogas, Psicólogues e Psicólogos comprometidos com a dignidade que qualquer vida humana requer, somos orientados pelos Princípios Fundamentais de nosso Código de Ética e reivindicamos a conexão entre o compromisso ético e político da Psicologia com a radicalidade da luta antirracista e antigenocida. 

Clamamos à nossa categoria e às(aos) estudantes de Psicologia para que enfrentem corajosamente este problema que afeta o mundo inteiro, e cumpram com seu dever ético de prezar pela dignidade humana, mantendo uma distância crítica da propaganda de guerra e reivindicando relações humanas e dignas em todas as situações em curso.

Quase todas as crianças ou adolescentes de Gaza já nasceram sob regime de isolamento. Associados aos insistentes ataques e outras consequências do cerco e da ocupação, há neste território uma imensa população infantil com graves problemas psicológicos e psiquiátricos. A situação de saúde mental é agravada pelas determinações sociais impostas ao povo palestino: um regime colonial e de apartheid, identificado pelas Nações Unidas em 6 relatórios, e reconhecido por diversas organizações ligadas aos Direitos Humanos, dentre elas a Anistia Internacional. 

Por isso é fundamental analisar historicamente os efeitos da ocupação israelente na Palestina. Os efeitos da Nakba, a catástrofe de 1948. E é função da Psicologia, enquanto ciência e profissão, recusar análises superficiais ou levianas. Neste sentido, criticamos instituições e associações do campo da saúde mental que se posicionaram de forma a contribuir para a propagação da retórica desumanizante. Em sua última nota, a APA negligencia o contexto histórico palestino e faz vista grossa às violências impostas a população sitiada em Gaza. Não fazem qualquer menção ao horrível bombardeamento do pequeno enclave [um território ou parte de um território completamente cercado por outro Estado] que afeta palestinos de maneira absolutamente incomparável com relação aos israelenses. Entendemos que as declarações dessa ordem ignoram as contingências que precarizam a saúde mental e ampliam o trauma coletivo, resultante de décadas de opressão, violência contínua, humilhação e injustiça infligidas pela ocupação de Israel.

Não há dicotomia entre a política e saúde mental. Não é possível analisar a ocupação da Palestina sem analisar as estratégias de desumanização, do esvaziamento de dignidade e vida do povo palestino. 

A desumanização de vidas palestinas – em atos e discursos – é o que normaliza o sofrimento palestino, como se fosse natural,  óbvio e impossível de interromper. Palestinos e palestinas têm, há décadas, vocalizado seu sofrimento. Têm clamado por visibilidade diante da comunidade internacional. E o fazem de inúmeras maneiras não violentas: resistindo a cada minuto, a cada segundo, para não desaparecerem. Produzem arte, produzem música, produzem poesia. Plantam e cuidam de sua terra e território originários. 

Enquanto não conhecemos uma Palestina livre do jugo colonial israelense, nenhum número de bombas extinguirá a vontade inata de viver com dignidade. Desta forma, a resistência palestina é, para citar Mahmoud Darwish, incurável. 

Entendemos e aceitamos a convocação histórica de nos colocarmos, como Psicólogas(os), junto ao povo palestino. Não estará em nosso nome a cumplicidade com o genocídio em massa, com a limpeza étnica e o assassinato, em especial, de crianças. 

Condenamos o sistema de segregação, discriminação e punição coletiva imposto à Palestina. Urge a construção da paz, que apenas passará pela consolidação do Estado Palestino, instaurando um regime de respeito aos Direitos Universais a todas(os) que vivem na região.

É preciso que o povo palestino – assim como todo povo em sua autodeterminação – tenha condições de existir para além dos muros impostos, dos arames farpados, dos campos de refugiados, e de toda a desumanização: que possam dar sua contribuição para a bela história, ainda a ser construída, de emancipação coletiva e de desenvolvimento do gênero humano.

Por que as associações de saúde mental dos EUA justificam o ataque genocida de Israel a Gaza

Por Dra. Samah Jabr / tradução Gabriela Carvalho

Texto originalmente publicado em 15 de outubro de 2023, no Middle East Eye. https://www.middleeasteye.net/opinion/israel-palestine-war-gaza-us-psychiatric-associations-genocidal-attack-justify-why

As condenações unilaterais das principais associações de psiquiatria reforçam a propaganda israelense e tornam-as cúmplices da opressão e do assassinato de palestinos.

Nesta semana, a Associação Americana de Psiquiatria (APA) emitiu uma declaração sobre os “ataques terroristas em Israel” e a Academia Americana de Psiquiatria Infantil e Adolescente (AACAP) divulgou um relatório semelhante à resposta aos “recentes ataques e atos de terror em Israel”.

Na situação atual, estas são condenações unilaterais e não abordam os 75 anos de ocupação da Palestina por Israel, e as numerosas atrocidades cometidas contra os palestinos ao longo desse período.

Enquanto a APA retrata a resistência palestina como anti-semitismo e terrorismo, o direito de resistência de um povo ocupado é legal de acordo com as normas do direito internacional e, assim como a própria saúde mental, trata-se de um direito humano fundamental.

O terrível desequilíbrio nas declarações da APA e da AACAP reflete uma perigosa falta de consciência ou ignorância imoral e intencional dos efeitos da ocupação à saúde física e mental, especialmente no cerco de Gaza aos palestinos.

Ao não abordar o sofrimento de anos dos palestinos e apoiar o ocupante, a APA e a AACAP violaram os seus próprios princípios de imparcialidade e neutralidade e expuseram a sua falta de compromisso com as necessidades de saúde mental de todas as pessoas.

Vidas desiguais

As declarações das principais associações de psiquiatria do mundo negligenciam o contexto histórico e fazem vista grossa à população sitiada em Gaza, metade da qual são crianças. Não fazem qualquer menção ao horrível bombardeamento do pequeno enclave [um território ou parte de um território cercado por outro Estado] ou ao que muitos grupos de direitos humanos chamam agora de genocídio contra os palestinos.

Da mesma forma, as declarações ignoram totalmente o impacto psicológico e o trauma da ocupação. Grupos de direitos humanos documentaram durante anos as condições desumanas a que os palestinos estão submetidos, incluindo relatórios dos Médicos pelos Direitos Humanos, Anistia Internacional e Save the Children, entre outros.

Parece óbvio que as preocupações dos profissionais de saúde mental devem estender-se igualmente a todas as pessoas. Quem melhor do que os psicoterapeutas para compreender a importância da liberdade?

Na sua campanha brutal de punição coletiva, Israel cortou o acesso a alimentos, combustível, eletricidade, água e suprimentos médicos. No que está sendo descrito como a segunda Nakba [catástrofe em árabe], já houve o deslocamento de centenas de milhares de palestinos que foram forçados a fugir de suas casas.

Um terço dos mais de 2.200 palestinos mortos e dos quase 9.000 feridos, até agora em Gaza, são crianças, mas as suas vidas aparentemente não eram dignas de menção pela AACAP.

Mesmo na sua declaração tímida sobre a atual “crise” em Gaza, a AACAP não consegue “lamentar” as crianças mortas, expressando apenas uma vaga preocupação pelas “imagens” potencialmente angustiantes às quais as crianças podem ser expostas. É como se os jovens adolescentes não tivessem sido forçados a suportar cinco guerras de Israel em Gaza, com inúmeras mortes de civis, durante a última década e meia.

Para além da violência, Gaza foi devastada por um período de 16 anos de bloqueio, sendo descrita como uma prisão a céu aberto com a maior densidade populacional. Nos últimos dias, mais de um milhão de pessoas foram ordenadas por Israel a deixar as suas casas sem terem para onde ir.

Parece óbvio que as preocupações dos profissionais de saúde mental devem estender-se igualmente a todas as pessoas. Quem melhor do que os psicoterapeutas para compreender a importância da liberdade para os seres humanos – tanto para os palestinianos, como para os israelenses? Caso contrário, a única explicação para esta clara duplicidade de critérios é que a APA e a AAPAC adotaram a narrativa oficial israelense e são incapazes de ver os palestinos como seres humanos.

Propaganda perigosa

As declarações desumanizam ainda mais os palestinos, ignorando os constantes desafios em saúde mental e o trauma coletivo, resultantes de décadas de opressão, violência contínua, humilhação e injustiça infligidas pela ocupação.

O bombardeio de escolas, ambulâncias e hospitais palestinos – incluindo o único hospital psiquiátrico em Gaza, que ocorreu na manhã de sexta-feira [13/10/23], como soube pelo diretor e meu colega, Dr. Abdullah Aljamal – é apenas um exemplo desses danos crônicos.

Tais declarações de organizações médicas, que alegam não serem um lobby político, inflamam ainda mais o sentimento público e reforçam a propaganda perigosa de apoio às ações genocidas de Israel contra os palestinos em Gaza. Ao invés disso, a APA e a AACAP poderiam ter feito melhor para enfrentar as mentiras cruéis divulgadas pelo governo estadunidense e pela mídia, incluindo os horríveis, e já desmentidos, “bebês decapitados“.

Se estas organizações estivessem verdadeiramente preocupadas com o bem-estar dos civis ou das crianças, poderiam ter confrontado o enorme arsenal de ajuda militar dos EUA a Israel, que contribui para a implementação dos projetos assassinos contra os palestinos.

Atitudes arrogantes

A APA e a AACAP poderiam ter contribuído de outra forma com o povo de Israel, ajudando-o a abandonar as suas atitudes arrogantes e o sentido de direito. Poderiam ajudar a conter as futuras violências, reconhecendo a luta legítima dos palestinianos para viverem em liberdade e dignidade e reconhecendo que onde quer que haja opressão, haverá resistência.

É essencial uma abordagem mais equilibrada e empática, que reconheça as lutas em matéria de saúde mental de ambos os lados e defenda uma resolução justa e pacífica para ambos os povos. Uma resolução baseada nos princípios dos direitos humanos e no direito internacional.

A saúde mental como direito humano fundamental foi o tema do último Dia Mundial da Saúde Mental, em 10 de outubro. Trabalhar em prol da saúde mental global exige uma perspectiva abrangente e inclusiva que apoie todos aqueles que são afetados por esta crise duradoura e contínua.

Os psiquiatras e profissionais de saúde mental palestinos apelam a todos os colegas, e às organizações de saúde e de saúde mental em todo o mundo, para que defendam a ética do nosso papel profissional e não sejam corrompidos pela ideologia política.

Devemos reagir contra a APA e a AAPAC e quaisquer outras organizações profissionais que contribuam para representações negativas e odiosas do povo palestino. Estas declarações perigosas tornam-os cúmplices da opressão e do assassinato de palestinos.

Dra. Samah Jabr é psiquiatra e chefe da Unidade de Saúde Mental do Ministério da Saúde palestino.

Conheça o Psimigra!

O PsiMigra surgiu em 2019 no Encontro Nacional do Projeto Atuação em Rede (Brasília), um espaço de capacitação dos atores envolvidos no acolhimento, na integração e na interiorização de refugiados e migrantes no Brasil.

O grupo foi criado por conta da baixa presença de profissionais da Psicologia neste espaço de encontro nacional. De 400 participantes, tínhamos somente 5 (1,25%) de Psicólogas/os.

Em 2020, começamos os encontros virtuais e o compartilhamento das nossas experiências. Hoje estamos com mais de 135 participantes, agregando novos interessados a cada dia.

Desde então, vários encontros e projetos foram concretizados:

  • Realização de 2 Seminários de Psicologia e Migração
  • Criação da Comissão de Psicologia e Migração do Conselho Regional de Psicologia de Minas Gerais
  • 1ª Pós graduação lato sensu em Psicologia e Migração do Brasil
  • Constituição do grupo de trabalho no Simpósio Brasileiro de Psicologia Política e no Encontro Nacional da ABRAPSO.
  • Além da interlocução com outras Redes de pesquisadores sobre o tema, como é o caso da LaEuMidi (Latino-European Social Psychological Network Focused on Migration, Displacement and Inclusion)

Com objetivo de profissionalizar e agregar ainda mais os profissionais e estudantes da psicologia interessados com a temática da Psicologia e Migração, a Rede PsiMigra está se constituindo enquanto Associação Brasileira de Psicologia e Migração.

Para que mais profissionais da psicologia possam compor a nossa rede, utilizaremos o instagram para divulgar as nossas ações, ações de profissionais associados e parceiros!

Sejam bem-vindes!