Finalizamos o ano de 2023 testemunhando a perversidade e a crueldade diante de novas catástrofes humanitárias, seja enquanto autores da violência ou sujeitos indiferentes à ela, permitindo que tais violações sigam acontecendo.
Falamos aqui dos mais de 80 dias de violações contra o povo palestino, mas também dos conflitos perpetuados no Iêmen, Sudão, Mianmar, Somália, Ucrânia e tantos outros.
Diante disso, as ações que acompanhamos no contexto internacional é de silenciamento e/ou endurecimento das respostas aos movimentos migratórios. A França aprovou no dia 20/12/23 uma nova lei de imigração, com ampla aprovação no parlamento, que traz uma perspectiva mais restritiva, securitária e criminalizante da migração.
Enquanto coletivo de Psicólogas(os) comprometidas(os) com os direitos das populações migrantes, expulsas, deslocadas, refugiadas, ou na diáspora, compartilhamos das reflexões do escritor e filósofo Paul B. Preciado em sua carta “Feitiço para aqueles que tornaram possível a lei da imigração”. Desejamos que as fronteiras internas e externas cedam, e que prevaleça em nós a capacidade de empatizar e de promover mudanças, para que novos futuros sejam possíveis.
“Feitiço para aqueles que tornaram possível a lei da imigração”
Por Paul B. Preciado
Este é um encanto tecnoxamânico para ser feito coletivamente durante as festas sagradas e pagãs que correspondem à passagem das noites mais longas e dos dias mais escuros do ano no hemisfério norte, até o retorno da luz. Este feitiço é dedicado a todos aqueles que redigiram a nova lei anti-imigração na França, que votaram a favor dela ou que, havendo manifestado a abstenção de votar ou lutar para que a lei fosse alterada, tornaram-na realidade.
Que as fronteiras que vocês criaram se fechem sobre vocês. Que as leis que decretaram sejam aplicadas a vocês mesmos. Que lhes seja retirada a nacionalidade que possuem e reivindicam como se fosse um direito natural e que, em seu lugar, seja criado um cartão de “delinquente político” para cada um de vocês, com seus nomes e os nomes de seus genitores, suas impressões digitais, seu sexo e sua foto.
Que vocês sejam objeto de repressão por todo lado e não sejam bem-vindos em lugar nenhum. Que as condições de acolhimento sejam sempre restritas. Que nem a amizade, nem o casamento, nem a família lhes possam garantir o direito de acolhimento. Que os seus pedidos de autorização de residência sejam recusados em toda parte e para sempre.
Que as fronteiras que vocês ergueram se fechem sobre vocês. Que nem o dinheiro nem o poder ajudem a atravessá-las. Que sejam sempre e em todo o lado deportados em nome da lei. Que os seus mais básicos direitos humanos sejam espezinhados mesmo antes do seu nascimento e depois da sua morte. Que não haja qualquer possibilidade de reagrupamento familiar para vocês e para os seus entes queridos. Que para onde quer que vocês forem, sejam estrangeiros.
Que a sua existência na Terra seja considerada um crime, e que o seu corpo vivo e vulnerável, a sua aparência, a sua língua e a sua religião sejam declaradas ameaças graves à ordem pública. Que, para onde quer que forem, suas presenças sejam reconhecidas como delito de residência ilegal, punível com uma multa de 3.750 euros. Que cada cruzamento se torne um posto de fronteira para vocês e que, em cada esquina, um policial possa tirar as suas impressões digitais sem o seu consentimento.
Que, se estiverem doentes, não tenham direito a tratamento. Que lhes sejam recusados sistemas universais de saúde. Quando passarem fome, que aqueles que se dizem cidadãos nacionais tenham o direito legal de privá-los do pão.
Que a polícia, a que concederam poderes ilimitados, os persiga por becos escuros, onde todas as portas e janelas se fecharão no seu caminho. O peito esmagado por botas, os olhos arrancados por balas de borracha.
Que aquelas e aqueles que os maldizem por causa do seu local de nascimento, da cor da sua pele, do seu gênero, da sua sexualidade, da sua religião ou etnia, do seu estatuto econômico ou da sua formação profissional, exerçam sobre vocês, através da imposição de quotas, um direito de vida ou de morte.
Que as fronteiras que erigiram se fechem sobre vocês. E quando morrerem a tentar atravessá-las, que os seus nomes sejam esquecidos e que os seus corpos, perdidos no fundo do mar, queimados no deserto ou esquecidos numa vala, nunca sejam encontrados nem enterrados como deve ser.
E depois de terem sido submetidos às leis de um mundo que vocês próprios criaram, que as suas fronteiras interiores cedam finalmente. Que os seus corações se abram e se tornem uma Arca de Noé cósmica, na qual as almas de todos os mortos que condenaram possam entrar sem impedimentos. Que os espíritos de Zyed Benna e de Bouna Traoré, de Mohamed Bendriss, de Alhoussein Camara, de Adama Traoré, de Nael Merzouk e de milhares de outros os possuam, os habitem e os transformem. E que vocês, cheios do poder das vidas que tiraram, ouçam o apelo da graça gringa e anarco-queer.
Através do poder transformador dessa graça, que possam ser totalmente diferentes do que são, porque o futuro do mundo depende da sua capacidade de mudar. Que possam experimentar a alegria e a dor da empatia universal. Que o seu coração anteriormente fechado se sinta solidário com tudo o que até agora considerou estrangeiro, estranho e criminoso. E quando sentirem o universo inteiro no seu corpo como se fosse a sua própria carne, aí então hão-de chorar inconsolavelmente.
Que a pomba da paz, cujas asas vocês cortaram, faça o seu ninho dentro de vocês e devore todos os desejos de domínio e de morte. Que a força do amor planetário expulse de suas mentes o fascista que as subjuga. Que o ditador que tomou posse do Parlamento das mentes seja destronado e que a liberdade reine na vida de vocês. Por meio deste feitiço, e contra a ideologia vontade de vocês, apelamos para transformação dos seus desejos sem qualquer reversibilidade possível, para o bem do planeta e de vocês mesmos.
Que tudo isto seja dito e feito em nome de James Baldwin e Audre Lorde, Frantz Fanon e Jean Genet, Aimé Césaire, Cherrie Moraga e Gloria Andalzúa, Leslie Feinberg e Marsha P. Johnson. Invocamos a sua força e poder, a sua compaixão e sensibilidade, para que a transformação seja total e absoluta. Amém, e feliz solstício.
Tradução: Prof. Dr. Adalberto Müller Junior
Texto e diagramação: Gabriela Teixeira e Henrique Galhano
Revisão: Rima Awada